quarta-feira, outubro 03, 2007

Mais do que contra a transposição a Caravana é a favor de soluções verdadeiras

Ruben Siqueira*

A Caravana em Defesa do Rio São Francisco e do Semi-Árido Contra a Transposição cumpriu seu objetivo de recolocar, em nível nacional, o debate sobre o desenvolvimento do semi-árido e a situação do rio, questionando se a transposição é real solução ou mais problema para a tão sofrida região nordestina e para o próprio São Francisco. A transposição é como combater a fome construindo um imenso super-mercado, dizia, didático, o pessoal da Caravana. Isso só interessa à nova “indústria da seca”, que ainda constrói fortunas e mantém currais eleitorais, inclusive para eleições presidenciais. Se o povo vai ter que pagar por água tão cara, subsidiando os usos econômicos intensivos em água (fruticultura irrigada, criação de camarão, siderurgia, etc.), ele tem o direito de saber a verdade e escolher se aceita ou não o “presente de grego”. Mas isso lhe está sendo negado com a veiculação de peças publicitárias, intencionalmente mentirosas.

Mais do que “contra” um projeto falacioso, a Caravana apontou para a necessidade de aprofundar a busca de soluções reais para o reconhecido déficit hídrico de algumas regiões do semi-árido. Isso fez a diferença, venceu resistências, plantou dúvidas e conquistou adesões à idéia da convivência e não de combate às condições naturais do semi-árido. As soluções existem, como pudemos comprovar nas experiências realizadas por organizações populares congregadas na ASA, que já catalogou mais de 140 tecnologias viáveis para o meio rural. O “Atlas Nordeste” da ANA – Agência Nacional de Águas revela o diagnóstico das necessidades reais do abastecimento hídrico humano nas cidades do semi-árido e indica as soluções diversificadas e descentralizadoras de recursos, a um custo de 3,6 bilhões, metade do custo da transposição até 2010 (o custo total é de 20 bilhões!). Todos se perguntaram: por que não é essa a opção?

Foram visitados os dois maiores açudes do Nordeste, Castanhão-CE (6,7 bilhões de m3) e Armando Ribeiro-RN (2,4 bilhões de m3). Impressiona a quantidade de água estocada da região mais açudada do mundo, que é o semi-árido brasileiro: são 70 mil açudes, com capacidade de 37 bilhões de m3, dos quais apenas 25% são aproveitados. E o povo passando necessidade ao redor. Tal qual acontece em muitas regiões do São Francisco. O problema é mesmo gestão democrática e eficiente e não falta d’água.

Foi além de qualquer expectativa encontrar em todos os lugares tanta reação contrária ao projeto. Uma Frente Paraibana inaugurou-se em João Pessoa, congregando dezenas de entidades, como já acontece no Ceará. A Caravana foi oportunidade para ganhar visibilidade uma crescente onda popular por uma nova prática política, cada vez mais distante dos centros institucionais do poder. E por um outro desenvolvimento, econômica, social e ambientalmente equilibrado, em que o povo organizado demanda e é sujeito de soluções reais, como acontece tão fortemente no semi-árido. Ele só não é mero “entrave ao crescimento”, como disse o Presidente Lula; ao contrário, é parte essencial do verdadeiro desenvolvimento sustentável.

A Caravana conseguiu sensibilizar autoridades para exigir do governo federal a retomada do diálogo sobre o desenvolvimento do semi-árido, a necessidade ou não da transposição e alternativas a ela. Governadores de Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas se comprometeram com a reabertura desta discussão, inclusive em levar a questão ao Presidente.

Diante das ilegalidades, tais como os estudos de impactos ambientais incompletos e os impactos sobre populações indígenas sem consulta ao Congresso Nacional, cresce a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal agilize o julgamento das ações contra o projeto e, em sessão plenária, decida sobre o mérito da questão e impeça definitivamente a obra.

A Caravana foi uma especial oportunidade de conhecer o Brasil, repensar nossas referências de vida e de trabalho, de desenvolvimento, de política, de nação... Se o Brasil ainda faz sentido, será para resolver as necessidades materiais e imateriais da maioria de seu povo, com suas diversidades e potencialidades, para um desenvolvimento equilibrado, auto-sustentado e soberano. A questão do semi-árido e no rio São Francisco pode ser a ocasião para que esse desafio comece, finalmente, a ser enfrentado com seriedade.

* Sociólogo da Comissão Pastoral da Terra / Bahia, participou da Caravana.