segunda-feira, julho 07, 2008

Começou o tempo de luta, Kalankó em Retomada

Ontem, reportei-me ao pé da serra do vale da divisa entre Pernambuco e Alagoas, quase pertinho do Rio Moxotó, é lá que o Povo da Etnia Kalankó vive a centenas de anos, eles haviam me comunicado na ultima sexta-feira (13/06) que estariam em retomada e queria a nossa presença. Com uma gripe muito forte, terminei não indo no dia combinado e, somente ontem aproveitando da presença de Clarice (jornalista da Articulação do São Francisco), decidimos de ir até lá, fazer uma nota, divulgar.

Ao chegar à retomada alguns barracos, um típico acampamento de sem terra, ou melhor, acampamento de índio sem terra. Na entrada uma faixa de apoio dos Povos do Sertão de Alagoas. Algumas pessoas descasulavam algodão, antiga atividade agrícola que praticam na região. Outros descansavam nos barracos. Encontrei o Zezinho, Cacique dos Koiwpanká que se encontrava lá desde o começo apoiando a iniciativa. Logo pediu ao Paulo cacique dos Kalankó, que me apresentasse ao lajeiro de água, tratava-se de um caldeirão de água na pedra feito por seus antepassados. Em meio à caatinga, pés de xique-xique e mandacaru, catingueira e facheiro ornamentavam o lugar. Uma energia diferente... Senti o cheiro do praiá. Eis que estávamos num lugar sagrado.

Entrada da Retomada Kalankó


Por que vocês vieram fazer a retomada aqui Paulo? Perguntei meio que com a resposta na ponta da língua. Respondeu-me: “porque é aqui o lugar dos nossos antepassados, dos primeiros que aqui chegaram”. Pedi-lhe que me desenhasse o território no papel. Em rabiscos foi indicando os lugares e as coisas que ali existem.

“Nós aqui vivemos sem terra, só tem o chão pra fazer a casa, muitos trabalham pra os posseiros em dias de serviço. Somos espalhados nessa região, mas, tem cinco aldeias que forma o Povo: Aldeia do Lajeiro, Aldeia Januária, Aldeia Gregório, Aldeia Gangorra e Aldeia Batatal” os maiores donos de terra aqui é Luiz Carlos que tem o domínio da terra da Gangorra e Zé Francisco que tem o domínio da Serra dos Campos. Aqui onde a gente tá, quem tem o domínio é Augusto, antigo posseiro. Nós somos índios sem terra. Acontece que aqui em baixo na Gangorra os sem terra vieram e acamparam. Daí a agente foi conversar com as lideranças que ali era terra de índio, eles disseram que não saiam e que a gente tinha que se junta a eles como sem terra. Nós dissemos que temos os nossos custumes e a gente ia fazer retomada como índio sem terra e não como sem terra. Eles não entenderam, mas, a poucas semanas o posseiro da Gangorra tocou fogo nos barracos deles. Nosso povo ficou com medo, mas, decidiram que mesmo assim, a gente tinha que fazer a retomada. Depois de muitas reuniões, comissão vai, comissão vem, decidimos que mesmo sem estrutura nós vinha. E viemo”.

Cacique Paulo Kalankó

Oriundos do Povo Pankararu, migrou, fugidos da perseguição um pouco antes de 1840. hoje são 5 aldeias com 75 famílias e cerca de 338 índios. Em tempos difíceis e de desolação, “chegaram três famílias aqui neste chão. Mas, a fome era grande, eles comiam os calangos dos lajeiros, aqueles répteis dos lajeiros. Daí o povo começaram a chamá-los de calancó. Em noites de ritual, os encantados nos iluminaram, - é aqui que se encontra o Povo Kalamkó!” disse o Pajé Antonio Francisco de 53 anos. O povo comemora no dia 25 de julho aniversário de auto-identificação. “Antes a gente não podia dizer que era índio. Sempre que nosso povo chegou aqui, praticava os rituais, mas, até das crianças, eles tinham medo e fazia em segredo. Esse povo era povo caçador, mas, depois que as caça ia se acabando, foram viver de alguma roça. Mas, nunca perdemos nosso ritual. A gente nunca mostrava o ritual da cura, pra não vazar. Minha mãe de criação morreu com 94 anos e contava pra nós dos rituais”. Disse.

Mapa desenhado por Paulo Kalankó

“Aqui teve 4 caciques. Os três primeiros não foram de muito agrado do povo, porque não ajudava muito, aí o povo se juntou e escolheu Paulo que é o 4º. Cacique, as famílias desses outros, umas 12 não gostaram muito, ficaram insatisfeitos. Mas, foi preciso. Eu sempre fui o Pajé aqui nesses 10 anos. Pelejei pra não ser, fiz de tudo pra escolherem outro, mas, os caminhos apontaram e eu não pude fugir da responsabilidade. Aqui tem 10 anos porque foi aí que agente começou a assumir nossa condição de índio”.

Percebi que já tinha passado a hora de almoço e a conversa seguia com seu Antonio o Pajé. Paulo gritou, mãe bota um feijão com piaba pra esse povo. Estávamos eu, Clarice, Celina, ex-presidenta do STR de Água Branca que a muito tempo ajudou no reconhecimento deles e a sua irmã Elizangêla, estudante de agronomia na Venezuela, ambas de família de caboclos, cujo troco se estruturava em famílias com espiritualidade tradicional, mas, não assumidos. Sua mãe falava com os encantados e sofreu terrivelmente de doenças que a medicina não podia explicar. Morreu sedo e somente depois, os filhos passam a reconhecer que seu sofrimento tinha que ter sido trabalhado. Alguns filhos têm o dom, mas, ainda tem medo de assumir.

Pois bem, voltando aos Kalankó, parece esquisito imaginar que numa época dessa a fome ainda é espectral. Ficamos por ali, nas conversas com um e com outra, terminamos por não comer, pois a única panela de comida quase não tinha nada para o que ainda faltava se alimentar. Enrolamos ali nossas próprias tripas e decidimos por comer na cidade quando chegarmos. Simples, pois, estávamos tão acostumadas a passar um dia de fome por causa da dinâmica do trabalho.


Toré das Crianças Kalankó


Ficamos ali, o Pajé cantou umas cantigas de toré e as crianças satisfeitas dançavam pra gente ver. Terminado o rito. Anunciamos a nossa ida. Fal, vice prefeita de água branca que já estava lá apoiando a três dias decidiu de nos acompanhar, a Irmã Alda do CIMI, continuou lá ficaria até o próximo sábado (21/06). Ao viajar decidimos passar na casa de uma rezadeira, uma senhora de 72 anos, Clarice queria que ela a rezasse. Mas, ao chegar lá, ela falou que não estava em condições já tinha rezado muito num povo que tinha chegado por lá nesta manhã. Clarice deixou seu nome pra ela rezar, pois não dava mais pra retornar. Continuando nosso retorno à Água Branca, ao avistar de longe a retomada do Povo, vimos que escolheram um lugar estratégico, ainda estávamos no terreiro da rezadeira. No alto os barracos de lona, estavam no pé de um Serrote. Uma vista que impressionou. Seguimos o caminho e ao passar no Riacho da Gangorra, riacho que se encontra com o Riachão e deságua no Rio Moxotó do lado de Pernambuco, senti o cheiro forte do Campió. Até imaginei que alguém fumava o cachimbo no carro, ainda olhei pra trás, mas, nada. Uma forte tontura me consumiu, escutávamos na conversa no carro as historias da família de Celina, sobre o dom de sua mãe. Algo estranho no organismo, senti forte enjôo. Mas, me contive em não comentar. A estrada estava ruim e continue a dirigir o veículo. Imaginei que poderia ter sido a falta de alimento, não comentei nada, chegando à cidade iríamos comer e tudo ficaria bem.

Paramos num restaurante e pedimos um peixe pra comer. A comida chegou depois de algum tempo, ainda me consumia aquela dor de cabeça. Na mesa, Fal conversava conosco sobre o Povo. Nesses três dias, ela relatou que o povo sabe conviver com a fome. “Farofa de café é o alimento da manhã, feijão e farinha é comida do cotidiano, hoje tinha umas piabas, mas, isso não é comum. As crianças vão pra escola com fome, quando tem merenda é a refeição do dia”. Disse.

Tanque de Pedra Natural no território tradicional

Parece característica histórica, que merece estudo. Na década de 90, o STR através de Celina esteve em reuniões naquele lugar. “O povo se esquivava de falar, era muita miséria. A fome era visível, comer uma vez por dia era comum”. Relata Celina. Depois foi que o CIMI veio acompanhar e daí as coisas foram melhorando, até a limpeza melhorou, algumas casas já são de alvenaria, já tem posto médico e a FUNAI já reconhece.

Essa noite percebi que a comida não me fez bem, ainda zonza, algo estranho se move em traços de lembranças esquisitas, sonhei esta noite com o povo no vale, gemendo de fome. Minhas visões me deportaram para além da minha linhagem de antepassados, vi pessoas que nunca tinha ficado na memória. Aparece-me em sonho os caminhos de lá. “seu lugar é lá, vá e leve comida”. Acordei pela madrugada, um incomodo só. O cheiro dos praiá me consumindo. Devo retornar neste São João.

Segundo Paulo, o objetivo é manter a organização na retomada pra não terem que voltar atrás. “Aqui é lugar de nossos antepassados. Já documentamos pra FUNAI, pra FUNASA e o Ministério Público pra tomar as providencias. Falamos com o Ministério Público pra olhar pela nossa segurança, não teve ameaça, mas, muitas conversas. E temos que nos prevenir, depois do que fizeram com os sem terra, agente tem que se prevenir. Queremos deles a formação do GT pra fazer nossa demarcação”.

Para o Pajé Antonio Preto, o território chega a cerca de 4 mil hectares e o povo só tem o chão da casa pra morar, não tem terra, pois está sob domínio de grandes posseiros. A primeira fase do Relatório Antropológico já foi feito, mas, não concluído. É tempo de luta, o Kalankó antes recuperando sua condição étnica, hoje se encontra em Retomada para garantir a demarcação de seu território tradicional.

Oriundos do aldeamento do Brejo dos Padres/PE, no século XIX vieram da etnia Pankararu, PAnkarú, Giratacó, Cacalankó Umão Canabrava Tatuxi de Fulo (Arruti, 1999) os Kalankó optaram pelo termo etnônimo que lembram os antigos Cacalancó, mas tinha haver como Antonio Preto fala, “o calango em tempo ruim, até sustenta a gente, a gente demo o nome de Kalankó, por mode de calango”.

Em 1998 aparece afirmando a identidade étnica, onde cinco pontas de rama de um único “tronco velho”, migraram para o Alto Sertão Alagoano do São Francisco: Kalankó, Karuazu, Koiupanká, Katokim e Geripankó. “O caboclo ta no mato ta apanhando murici. Ele vem pra ajudar o povo de ouricuri”. Além do Toré, o povo pratica os Serviços de Chão e as linhas do Praiá.