sábado, março 06, 2010

VANGUARDA DO ATRASO: A retomada das usinas nucleares

Claudio Ubiratan Gonçalves*

A intenção aqui não é alardear o leitor com mais um cenário pessimista e catastrófico vivenciado por todos nós neste mal-estar espacial do século XXI. Quero alertar que o quadro poderá se tornar mais obscuro e desesperador caso os governantes não abram o debate para a elucidação das questões relacionadas à problemática nuclear. É preciso ponderar que antes da introdução de uma nova modalidade energética na região Nordeste e do projeto de expansão da energia nuclear no Brasil torna-se imprescindível um profundo debate acadêmico, bem como com toda a sociedade. E neste sentido, focamos alguns aspectos relevantes no tocante ao campo político e técnico do assunto.
Compreenderemos a retomada da bandeira da energia nuclear no espaço-mundo considerando que o desenvolvimento econômico permanece assentado na expansão industrial e, que por sua vez o modelo depende de crescente geração de energia. A grande defensora do uso da energia nuclear no mundo, a IAEA - International Atomic Energy Agency, ligada a ONU e no Brasil a CNEN - Comissão Nacional de Energia Nuclear, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, argumentam em torno da minimização dos custos ambientais, das vantagens do volume de energia que pode ser gerado sem maiores emissões de poluentes e de um espaço físico reduzido.
Por conseguinte, a segurança do sistema nuclear avançou significativamente, mas, seu relativo controle é suscetível a equívocos humanos. Não podemos apagar dos arquivos da memória, acidentes nucleares tais como: a Central Nuclear de Windscale na Inglaterra em 1957, teve o seu reator incendiado, lançando radionuclídeos na atmosfera, contaminando pastos e gado; em 1979 ocorreu exposição radioativa decorrente do vazamento da usina de Three Miles Island, em Harrisburg, Pensilvânia (EUA) ou ainda o marcante acidente da Central Nuclear de Chernobyl (URSS) que disseminou radioatividade por todo o mundo em 1987. Na época, o Kremlim confirmou 08 vítimas fatais e a hospitalização de duas centenas de pessoas. Entretanto, indagamos: é possível estimar quantas pessoas já morreram e quantas mais morrerão de câncer nos próximos anos, vitimadas por Chernobyl?
No Brasil, o dia 13 de março de 1982 é o marco zero da entrada definitiva e equivocada do país na era nuclear. Iniciou-se o funcionamento da unidade I da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto mais conhecida como Angra I. O programa nuclear brasileiro deste período sob a égide do regime militar que não estava preocupado em suprir as deficiências energéticas, pelo contrário, a exploração da energia nuclear compunha o arsenal militar para demonstrar que o país estava apto como potência a assumir posição de comando na geopolítica da guerra fria. Por sua vez, Angra II teve sua construção iniciada em 1981 e a operação iniciada somente em 2000 no governo de FHC.
Desse modo, após um período de hibernação de projetos em grande escala, sobretudo os nucleares, temos a introdução do Plano de Aceleração do Crescimento do governo Luis Inácio. Em julho de 2008, o governo criou o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro que tem como função fixar diretrizes e metas para o desenvolvimento do programa e supervisionar sua execução. O governo alega através do Plano Nacional de Energia a necessidade de expansão em seu sistema elétrico brasileiro de mais 4.000 Mw, contando para isto com Angra III com capacidade de produção de 1.405 Mw e mais quatro usinas nucleares com capacidade de 1.000 Mw, sendo duas no Sudeste e outras duas no Nordeste. O processo encontra-se na etapa inicial que consiste na seleção de sítios para abrigar a Central Nuclear do Nordeste, com previsão de operação da primeira usina para 2019. De acordo com o padrão técnico e normativo de segurança os critérios essenciais são: água abundante e baixa concentração demográfica, cogitando-se quanto a este aspecto áreas próximas ao Rio São Francisco. Como se não bastasse o malogro da transposição agora temos o fantasma da usina nuclear rondando o Velho Chico. O fato é que as disputas pelos investimentos orçados em cerca de R$ 7 bilhões para cada usina já despertou interesse entre os estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Bahia. Alagoas e Bahia partiram na frente com uma série de campanhas e produção de reportagens exaltando as vantagens da instalação de Centrais Nucleares, correlacionando com a geração de postos de trabalho e eliminação da pobreza e miséria. Como se tudo fosse possível num passe de mágica.
Em descrição sumária, o ciclo da energia nuclear inicia-se pela exploração do minério. Depois de extraído das rochas, ele é moído, purificado e submetido a reações químicas para que seja preparado o hexafluoreto de urânio. Esse composto é enriquecido, para só então ser reduzido a urânio metálico que é o combustível usado no reator. O combustível nuclear é usado no reator por aproximadamente dois anos. Então, o lixo produzido é estocado até que sua radioatividade decresça um pouco. Aí ele é enviado para ser reprocessado. Após o reprocessamento, obtem-se urânio, plutônio e lixo de alto nível, esse último composto de uma infinidade de radionuclídeos extremamente radioativos.
A radioatividade que sai da usina se dispersa na atmosfera, mas o perigo para o homem que a respira diretamente é secundário, pois a quantidade de radioatividade é muito baixa. O risco existe para aqueles que são obrigados a viver, anos e anos, em contato com traços de elementos químicos radioativos e com pequenas doses de radioatividades introduzidas no meio e que chegam ao homem através da cadeia alimentar. São estas pequenas quantidades que, somando-se ao longo do tempo, causam sérios prejuízos ao homem, uma vez que esses materiais radioativos têm efeito cumulativo nos organismos.
A usina nuclear funciona da seguinte forma: o reator está contido num recipiente sob pressão, esta pressão se destina a impedir a ebulição da água de resfriamento que circula no circuito refrigerador primário; do recipiente sob pressão emergem as barras de controle; o circuito refrigerador primário no permutador de calor transforma a água sob pressão normal em vapor, que através dos tubos do vapor secundário chega à turbina unida ao gerador elétrico; depois do qual um condensador, resfriado por um circuito de água condensada fornecida por um rio ou pelo mar, transforma o vapor que sai da turbina em água a fim de aumentar o salto de pressão disponível para a turbina. A água condensada volta ao ciclo através dos tubos do condensador; o reator é rodeado por um edifício muito sólido, capaz de resistir às pressões altíssimas produzidas por uma eventual pane do reator e impedir assim o vazamento da radiação.
Um grave problema que merece atenção trata-se da gestão do rejeito radioativo. Uma das soluções encontradas pelos países de tecnologia nuclear para esse grave problema é o enterramento do material em aterros especialmente preparados, porém podem ocorrer vazamentos e contaminação do lençol freático. O lixo nuclear pode irradiar o que está à sua volta, ou contaminar por átomos radioativos. Por isso é necessário embalá-lo com uma blindagem de grossas paredes de cimento e chumbo. Essa blindagem deve impedir que essas partículas radioativas do lixo entrem em contato com o ar ou com a água onde está depositado. Com o passar do tempo, diminui a radioatividade do material, tornando-o menos perigoso. O reprocessamento do lixo nuclear foi desenvolvido, tanto para extrair o plutônio (formado no reator pela fissão nuclear), utilizado na fabricação da bomba atômica, como para recuperar urânio não consumido no reator. Esse urânio pode ser enriquecido e novamente usado como combustível.
O lixo nuclear de reprocessamento também é resíduo de alto nível, já que dele fazem parte radionuclídeos transurânicos que foram formados durante o bombardeamento de nêutrons na fissão nuclear. Para realizar-se o reprocessamento, o combustível deve ser guardado por meses em piscinas de refrigeração, pois ainda está muito radioativo para ser manipulado. Só então é enviado para ser reprocessado mecanicamente. O combustível é, então, dissolvido em ácido e os produtos da fissão separados do urânio do plutônio, na qual os compostos são lavados com diferentes solventes orgânicos. Essa extração baseia-se na solubilidade de certos compostos e na insolubilidade de outros. Com isso é possível transferir compostos sólidos que se encontram misturados com outros, para soluções nas quais se encontra um estado de pureza significativo.
Ressaltemos que a Constituição Federal contém inúmeros dispositivos concernentes à utilização da energia nuclear. É importante que se observe que a utilização da radioatividade tem diversas finalidades, e na Lei Fundamental são tratados temas que variam desde o uso de radioisótopos com objetivos medicinais até proibição de utilização de energia nuclear com finalidades agressivas. É, portanto uma abordagem genérica e ambígua. Foram estabelecidos no art. 21, inciso XXIII, os princípios fundamentais para utilização da energia nuclear no Brasil. Esses princípios, contudo, não devem ser vistos como únicos aplicáveis às atividades nucleares. É fundamental que sejam incorporados aos princípios especificamente voltados para energia nuclear àqueles que dizem respeito à conservação do meio ambiente e aos direitos fundamentais da coletividade.
É indiscutível que se continuamos nesta direção estaremos na vanguarda do atraso ao priorizarmos a retomada do programa nuclear. Caminhamos na contramão da Espanha e da Alemanha que iniciaram um processo de revisão e mudança no modelo energético de seus países, e estamos em aproximação do modelo chinês que assumiu na atualidade o ônus inconseqüente da construção de 25 usinas nucleares, além da previsão desmedida de mais 54 novas usinas para os próximos 30 anos. Estamos diante de um impasse: desenvolvimento econômico sobre as bases de qual modelo energético?

*Geógrafo e Professor Universitário. Membro da Associação dos Geógrafos Brasileiros.