domingo, março 23, 2008

MALHAR JUDAS OU MALHAR JESUS?

Claudio Ubiratan Gonçalves[1]

A malhação do Judas é um costume trazido pelos ibéricos desde os primeiros séculos de colonização e se estende até hoje, embora, esteja mais restrita as pequenas e médias cidades do imenso Brasil. A malhação, queimação ou enforcamento ocorrem geralmente em praça pública no sábado de aleluia num misto entre sagrado e profano, visto que em plena semana santa ocorre a exorcização do mal. Mal este que é captado pelo sentimento coletivo em torno de algo que desperta indignação, aversão, raiva e até cólera. Assim, a ira despertada através de pequeno grupo que inicia a brincadeira encontra eco, contagia várias pessoas e o sentimento passa a ser legitimado coletivamente pela comunidade dos participantes. Após julgamento, condenação, leitura do testamento do boneco-traidor ocorre a execução do Judas. Em ano de copa do mundo pode ser um técnico da seleção como foi em 1982 com Telê Santana, políticos corruptos como ACM, Maluf ou os anões do orçamento que também já foram alvo dos brincantes.
Neste sentido, a polêmica recente no sul do Ceará, envolvendo a personificação da figura do Judas Iscariotes no religioso franciscano D. Luis Cappio, representa a total inversão de valores que a pós-modernidade encarregou-se de difundir. Judas é o apóstolo traidor e obcecado por dinheiro. A não diferenciação entre os campos econômico e cultural marca profundamente o tempo em que vivemos, onde a forma da produção de mercadorias e a alta especulação financeira tornaram-se o cultural, bem como a cultura tornou-se profundamente econômica orientada para produção de mercadorias, como salienta o Prof. Fredric Jameson da Duke University. Neste aspecto, a confusão entre os valores econômico, cultural e também político está diretamente relacionada com a ação da Fundação do Folclore Mestre Elói, sediada em Crato no Ceará, responsável pela votação popular da eleição do Judas da semana santa. Foi uma votação tendenciosa onde o primeiro nome impresso da lista foi o de D. Cappio, seguido de comentários que influenciavam o eleitor colocando o bispo como inimigo dos cearenses pela sua posição contrária ao projeto de transposição das águas do rio São Francisco. O religioso foi colocado ao lado de carrascos e bandidos do porte de Hitler, Fernandinho Beira-mar, George Bush, dentre outros. Atitude sobretudo, insolente!
A sátira oportuna e recheada de humor do apóstolo que perde a fé e vende seu mestre por míseras 30 moedas, não reflete a realidade de luta e abnegação de D. Cappio, bispo de Barra na Bahia que vive as margens do rio São Francisco, dedicado à defesa do povo ribeirinho daqueles grotões do sertão. Sertão esse à margem das políticas públicas, dos inúmeros Judas inescrupulosos que vêem no povo sanfranciscano, reserva de mão-de-obra ou mais um número na contabilidade eleitoral. É lamentável como alguns promotores culturais se aproveitam das tradições históricas para confundir e manipular a opinião pública. É empobrecedor para a cultura popular, utilizando-a para fins escusos. Creio não ser esta a melhor forma de chamar atenção para um projeto tão autoritário quanto ineficaz para o semi-árido brasileiro como o da transposição do São Francisco. Deixemos o bispo seguir seu caminho no exemplo de Jesus e malhemos os verdadeiros Judas-traidor, que são os políticos e técnicos que defendem essa falácia da transposição.
[1] O autor é cearense e atualmente reside em Sergipe. Geógrafo e Professor da Universidade Federal de Sergipe.