quarta-feira, dezembro 26, 2007

O JEJUM E ORAÇÃO QUE ACABARÁ COM A TRANSPOSIÇÃO


Paulo César Moreira Santos


Durante os dias 27 de novembro à 20 de dezembro o nosso Brasil e grande parte do mundo pôde acompanhar a atitude tão polêmica de um bispo que, baseado no evangelho, acredita que os grandes demônios podem ser vencidos e que a melhor resposta para a irracionalidade de nossa época é a loucura por isso, pela segunda vez, decidiu iniciar um período de jejum e oração como protesto e resistência, doando a vida, se necessário, pela vida do rio São Francisco e pela vida do seu povo. Dom Luiz Cappio é bispo da diocese da Barra-Ba, no Nordeste do Brasil.

O motivo, também já conhecido por nós, é a sua radical oposição ao projeto de transposição do Rio São Francisco, um mega projeto encabeçado pelo governo federal e assediado por grandes empresários e empreiteiras, em que se construiu a cruel ilusão de que a obra irá mudar a vida do povo pobre que passa sede, pretendendo assegurar água para 12 milhões de brasileiros que vivem no semi-árido. É uma obra faraônica, que gastará mais cimento do que se gastou na construção do muro de Berlim, quando se dividiu a Alemanha em dois blocos.

Serão 720 quilômetros de canais artificiais em concreto armado nos dois eixos principais do projeto, segundo o relatório de impacto ambiental da obra. Mas no total serão mais de dois mil km de canais incluindo o uso de leitos secos. Águas que precisarão ser continuamente bombeadas do São Francisco com elevado gasto energético.

Muitos estudiosos e pesquisadores, dentre eles Alberto Daker, especialista em hidrologia e Apolo Heringer Lisboa, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, apontam sérios problemas de cunho ambiental, econômico, político e social que surgirão, além de não resolver os próprios problemas a que se propõe. Entres os principais problemas podemos citar o desvio de um rio degradado, a construção de barragens para controlar sua vazão, a supressão de mata nativa, a mudança no regime de cheias do rio, prejudicando a fauna, como também populações esperançosas mediante a promessa de uma água que não pode chegar a seu destino e da promessa da reforma agrária, o risco da migração de populações para as áreas próximas aos canais, sem poder ser atendidas por essas águas, populações que dependem da pesca no São Francisco, que será prejudicada pela construção de barragens.

A ANA, Agência Nacional de Águas, instituição ligada ao próprio Governo Federal apresentou detalhadamente uma série de alternativas técnicas que possibilitariam a garantia da oferta de água para não apenas no semi-árido nordestino, mas em todos os nove estados do Nordeste e também no norte de Minas Gerais. Ao todo seriam 34 milhões de pessoas beneficiadas a um custo bem menos do que o da transposição, e isso não foi levado em conta.

O projeto atinge ainda, de forma direta e indireta, mais de 40 aldeias indígenas que vivem nas regiões da bacia do São Francisco, tornando-o totalmente inconstitucional, uma vez que não foram consultados os próprios indígenas e muito menos tramitado pelo Congresso Nacional, instância responsável. Sobre as irregularidades, que são muitas, há bastante material importante e esclarecedor que se pode consultar.

O fato é que um franciscano que mora há mais de trinta anos na beira do rio, que o conhece muito bem, ao rio e à população que depende dele pra sobreviver, decidiu pela segunda vez arriscar a sua vida para que esse projeto pudesse ser paralisado, conhecido e debatido com o povo brasileiro, proposta firmada e não cumprida pelo governo desde o primeiro jejum, que durou onze dias. Profundamente insatisfeito com isso e com o fato das obras terem iniciado, no dia 27 de novembro de 2007 Dom Luiz dá início a um período indeterminado de jejum e oração.

A cidade escolhida foi Sobradinho, na Bahia, um lugar eternamente marcado pela construção da barragem que leva o mesmo nome e onde sucedeu um dos maiores exílios forçados do Brasil, 70 mil pessoas. Na capela da comunidade de São Francisco o frei Luiz iniciou seu protesto, no silêncio e no isolamento. Imediatamente recebeu o apoio do povo e dos movimentos sociais que desde o primeiro dia o acompanhou. Por vários dias quem conversava com ele não percebia o sofrimento que deveria estar passando, isso pela alegria e pela esperança que transmitia à todos e todas que vinham ao seu encontro. Mais de uma vez o escutei corrigindo pessoas que coordenavam as visitas, dizendo: “trate cada pessoa como se fosse uma flor”.

A pequena igreja foi cercada de acampamentos dos vários movimentos que trabalhavam dia e noite pra articular tudo o que acontecia em torno do gesto do frei, cuidar da segurança do espaço, armar barracas pra receber as várias romarias, receber os diversos apoios que foram se avolumando de dentro e fora do Brasil, receber diversas personalidades como Letícia Sabatela, Eduardo Suplicy, João Pedro Stedile, José Comblim, Heloísa Helena e outros. Tudo isso exigia muito esforço e articulação, o que não faltou por parte dos que lá estavam, CPT, MST, MPA, MAB, IRPA, dentre outros movimentos, também vários religiosos e religiosas e padres. Mais de 120 representações de movimentos sociais compareceram na Romaria do dia 10 de dezembro, juntando mais de 6 mil pessoas.

Foram dias de uma intensidade indescritível em que todos se concentravam na esperança de um desfecho justo. No final de cada dia celebrávamos a Eucaristia, onde se vivenciava naturalmente o cume da luta do dia, eram momentos de oração, de mística e também de um pouco de formação, e onde eram celebrados e anunciados os diversos apoios que chegavam de toda a parte do mundo, havia muita ressurreição.

O que mais assustava era a corrida contra o tempo, o isolamento e a indiferença do governo e da mídia, que literalmente decidiram bloquear a atitude do Frei Luiz. Somente a partir do décimo quinto dia que a igreja enquanto instituição ou enquanto colégio dos bispos, uma vez que o frei Luiz faz parte dele, demonstrou preocupação. Felizmente a CNBB escreveu uma carta de apoio explícito, condenando o projeto de transposição.

Vários protestos se espalharam por todo o Brasil e vários grupos aderiam ao jejum e à oração. Mas, se de um lado havia uma crescente conscientização e solidariedade frente a gravidade do problema, do outro tínhamos um governo frio e antidemocrático, que utilizou o próprio exército brasileiro como instrumento de cooptação e militarização do Estado. O Ministro Gedel Vieira, que era contra o projeto até se tornar ministro, tentou de todas as formas banalizar a atitude do bispo.

Dom Luiz se manteve sempre esperançoso e fisicamente não muito fraco até o décimo nono dia, após isso se percebeu uma fraqueza significativa, diminuindo bastante o seu contato com o povo e com a imprensa. Para ele e para todos nós a expectativa estava na reunião dos ministros do STF, que aconteceria no dia 19, data em que se completaria o seu vigésimo quarto dia de jejum. Todos sentimos que ele se esforçou muito para suportar até esse dia, na viva espera de que um projeto com tantas irregularidades, com tantos impactos sobre a natureza e sobre a vida do povo pobre, um projeto que irá apenas alimentar a “indústria da seca”, não pudesse ser aprovado por responsáveis pelo cumprimento da justiça em nosso país.

A notícia que nos chegou foi de um impacto quase mortal, a liminar que paralisava a obra foi derrubada e a ação do procurador geral da justiça que ia de encontro ao parecer do hoje aposentado ministro Sepúlveda Pertence sobre as 14 liminares, ainda a serem julgadas em seu mérito, foi votado a favor dos interesses do governo. No primeiro momento o sentimento de frustração foi total e todos fomos tomados pela preocupação com a vida do nosso bispo. Ele, logo ao saber se chocou profundamente e o que se percebeu é que não tinha mais força física e nem psicológica para continuar suportando, chegando ao ponto do desmaio: “A minha grande dor é que os pobres nunca vencem...” foi o que pronunciou vinte minutos antes de desmaiar.

Ele ficou mais de duas horas e meia em estado de semi-inconsciência, momento em que o médico, frei Klaus, juntamente com a família decidiram conduzi-lo ao hospital de Petrolina, onde foi internado na UTI. A reação do povo foi imediata, demonstravam muita preocupação e indignação, muita gente foi para a capela para ver o frei, e em oração, cantos e lágrimas todos acompanharam a sua saída da Sacristia para a ambulância. Enquanto isso o governo se mostrava irredutível, ou melhor, a situação quanto ao diálogo se agravou após a decisão do STF.
Depois de uma séria avaliação os movimentos sociais, num glorioso gesto de valorização da vida, pediram encarecidamente ao frei que abdicasse do jejum, apostando e gastando suas forças junto a luta e a mobilização da sociedade organizada. Refletiram que há muito caminho a percorrer e o frei é um testemunho e símbolo fundamental nesta batalha, por isso a sua vida é demais importante para o nosso país.

Após ter saído da UTI, Dom Luiz, ainda muito fraco pede licença ao hospital para voltar a sobradinho e rever o povo que esteve todo o tempo ao seu lado. Foi conduzido numa cadeira de rodas, na ambulância da UTI, ainda em jejum, somente recebendo o soro.
Às 19 horas todo o povo o esperava para uma celebração campal, dois bispos e vários padres estavam presentes, dentre eles o seu grande amigo, José Comblim. Foi uma celebração simples e de extrema vivencialidade, onde se leu a carta finalizando o período do jejum. Ao fim da celebração fez-se uma positiva avaliação do todo o acontecimento.

De tudo isso ficou evidente pra todos nós pelo menos cinco pontos:
1 – a fragilidade do nosso processo democrático, onde o poder executivo desconsidera as leis do seu próprio estado.
2 – a necessidade de maior sintonia e articulação da sociedade e movimentos sociais, frente a problemas vinculados à soberania de um povo.
3 – o poder da mídia e a manipulação desse pelo governo e pelas elites brasileira, inclusive as TVs católicas, que omitiram o fato por vários dias.
4 – o aprisionamento diplomático e burocrático da igreja, que provocou angústia nos cristãos e cristãs, que esperavam desde o início um apoio profético. A carta da CNBB, apesar de tardia, teve sua grande importância.
5 – e que ainda há muito o que percorrer, pois a transposição é apenas um ponto dentro da estratégia de dominação do capital sobre a vida humana e a natureza.

Portanto, fica pra nós, igreja, sociedade e movimentos sociais, a desafiante tarefa de levar á frente essa luta, ir em direção ao caminho que frei Luiz nos aponta e estar sempre em alerta à gravidade da situação que estamos vivenciando, transposição de nossos rios, destruição da Amazônia, privatizações de empresas estatais e bens naturais.

Se persistirmos no jejum contra o capital e contra o consumismo e na oração contra a eficácia pragmática do nosso sistema, a luta cotidiana ganhará uma nova dimensão e juntos sonharemos com o fim dos demônios.